quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O som mais belo depois do silêncio

Houve uma época (para ser mais preciso, desde a metade do ano passado até o começo deste ano) em que eu basicamente passava dias seguidos apenas ouvindo aos discos da ECM Records (Editions of Contemporany Music). Não sei explicar muito bem em palavras, mas a música que saia dos discos da gravadora simplesmente parecia ser o que eu passei a minha vida procurando, e de cara não consegui mais parar de ouvir. Entre algumas pessoas que estão mais por dentro da gravadora se discute algo como o "som da ECM". Este tipo especifico de som é difícil de descrever, mas qualquer um que ouvir uns três ou quatro discos, independente da época que foram lançados ou do artista em questão, irá notar que realmente existe um "som", um tipo de clima que permeia todos os lançamentos da gravadora. Para explica-lo já foram usadas inúmeras metáforas (derivadas principalmente do design dos discos, minimalistas e com imagens evocativas) , quase todas abstratas e propensas a várias interpretações, como: "observar cubos de gelo derretendo", "olhar para paredes brancas", "ver o mundo em cores manchadas", e por aí vai.

Em relação a música em si, é um pouco complicado dizer o que ela realmente é. Jazz, World Music, Música de Câmara, Fusion, New Age, Ambient, Eletrônica, Clássica, todos estes rótulos são dados para os diferentes artistas do selo, e quase sempre pode-se argumentar que são apenas periféricos e não abrangentes. Um artista "típico" da gravadora é alguém cuja música não pode ser explicada, e cujo estilo passeia livremente por estéticas e técnicas muitas vezes contraditórias. Tal abordagem para a música resulta em um tipo de som ao mesmo tempo muito pessoal e universalmente abrangente.

O selo foi fundado em 1969 por Manfred Eicher, um baixista de música clássica que tinha uma queda por jazz e música étnica. O primeiro lançamento do selo foi o disco "Free At Last" do pianista americano Mal Waldron. Os lançamentos seguintes seguiam uma linha de jazz experimental e descompromissado com formas. Dentre estes, um dos mais significativos é o debut do saxofonista norueguês Jan Garbarek (um dos artistas mais proeminentes do selo) "Afric Pepperbird" de 1970, e "Conference of The Birds" (1972) do baixista David Holland. O processo de criação dos álbuns era muito rápido (1 ou 2 dias para gravar, tudo ao vivo e com improvisos) e a mixagem era igualmente veloz (1 dia normalmente).

Com os discos seguintes o som da gravadora foi se moldando lentamente da pura energia visceral dos primeiros lançamentos para um cada vez mais contemplativo e impressionista. Em 1971 a revista canadense de jazz, CODA, em uma resenha dos discos do selo usou a frase "o som mais belo depois do silêncio" para descrever aquele tipo de música que basicamente não tinha semelhantes na época. Logo a ECM usou a frase como seu mote.

Os lançamentos dos anos 70 incluem provavelmente uma parte da mais bela e introspectiva música já lançada dentro de um grande selo. "Solstice" (Ralph Towner), "Open To Love" (Paul Bley Trio), "Timeless" (John Abercrombie), "The Köln Concert" (Keith Jarrett), "Solo" (Egberto Gismonti), "Rypdal/Vitous/Dejohnette" (Terje Rypdal) e "Dis" (Jan Garbarek).

Nos anos 80 foi lançada a "ECM New Series" dedicada a música clássica de nossa época. O primeiro lançamento foi o agora emblemático "Tabula Rasa" (1984) do compositor minimalista estoniano Arvo Pärt. O selo começava cada vez mais a expandir seus horizontes e acolher artistas provenientes do mundo inteiro, por tal razão se tornou cada vez mais difícil descrever que tipo exato de música é produzida. Artistas da ECM costumam colaborar entre si em lançamentos de duos/trios em que cada parte contribui com seu background e estilo para criar um todo completamente original. Um lançamento memorável destes pequenos conjuntos é o álbum "Folk Songs" (1979) do trio Egberto Gismonti/Charlie Haden/Jan Garbarek.

Para alguém que quer se aventurar neste tipo particular de música, "a música da ECM", qualquer um dos discos citados acima é uma ótima pedida. O problema é que depois de ouvir qualquer um deles, é impossível não ouvir outros (o que ocorreu comigo). Mas como eu mesmo posso descrever, depois de maratonas ouvindo só isso, os efeitos colaterais incluem latergia, sonolência, e um nível muito perigoso de introspecção. Sugiro moderação.


terça-feira, 14 de setembro de 2010

A Organização Segundo Webern



Dias atrás consegui a partitura das "Variações Para Piano" Op.27 do austríaco Anton Webern (1883-1945) e passei umas boas horas observando as estruturas internas daquela música considerada muito cerebral, esparsa e inaudível para muitos. Interessante notar que todas estas conclusões sobre a música de Webern ao mesmo tempo que são um grande engano também podem ser uma verdade sob vários pontos de vista.

Provavelmente o compositor mais interessante da "Segunda Escola de Viena", Webern cultivava um tipo de música extremamente breve e simetricamente muito bem organizada. Perder alguns segundos de música normalmente é perder todo o significado expressivo de movimentos inteiros, visto que tudo era tão bem compactado, e tanto o som quanto o silêncio eram distribuídos de forma igualitária no espaço.

Usando a técnica de doze sons elaborado por Schoenberg, Webern pode dar asas a sua imaginação e criar a música que sempre quis, uma que estivesse livre das leis tonais que regiam a música desde a época medieval até os seus dias, mas também uma que fosse um reflexo da organização presente na natureza. Em relação a sua "Sinfonia" Op.21, Webern comparou a série ao "urpflanze" de Goethe, uma planta primordial, da qual todos os componentes de um organismo inteiro são derivados.

O primeiro movimento da sinfonia apresenta duas partes que são repetidas, derivadas de cânones de um tema do qual a versão reversa do mesmo está presente. A série em si é organizada de um modo a apresenta todos os intervalos possíveis dentro de uma oitava (A-F#-G-Ab-E-F-B-Bb-D-C#-C-Eb), caso repartirmos ela em dois conjuntos de seis notas, podemos notar que o segundo é a transposição reversa do primeiros por um trítono. Pelo fato de que o primeiro e o último intervalo presentes nesta série são complementares (sexta maior e terça menor) as duas últimas notas de qualquer alteração da série serão sempre iguais as duas primeiras.

A obsessão por um tipo de expressão super compactada e derivada organicamente de motivos breves tem seu ápice no "Concerto Para Nove Instrumentos" Op.24. Aqui Webern criou provavelmente sua obra mais concisa e organizada, tudo que é supérfluo e desnecessário é retirado. O que resta é uma música transparente e sonoramente equilibrada entre o som e a falta dele.

A série aqui é dividia em quatro grupos de três notas, todas derivadas do primeiro conjunto:

[B-Bb-D] [Eb-G-F#] [G#-E-F] [C-C#-A]

Tomando o primeiro conjunto como o original, o segundo seria o retrógrado inverso, o terceiro o retrógrado, e o quarto o inverso. Podemos analisar da seguinte maneira também: tomando a nota B como a primeira das doze (B=0) numericamente falando a série seria assim: 0,11,3,4,8,7,9,5,6,1,2,10.Como exemplo, o terceiro conjunto (9,5,6) é o primeiro (0,11,3) ao contrário (3,11,0) e transposto por 6 (3+6=9, 11+6=5, 0+6=6).

Tentativas de analisar a obra como um todo tem causado grandes dificuldades em especialistas e teóricos, visto que, pelo fato de Webern usar sistematicamente conjuntos de três notas que se alteram entre si por meio de variações internas, a idéia da série invade todo o conjunto estrutural da obra como um todo, necessitando assim graduais reavaliações de linhas de pensamento. O esparso e silencioso segundo movimento em especial, é quase que uma fonte inesgotável de segredos no qual dias podem ser passados tentando desvenda-los.

Ao trabalhar com conjuntos de notas e organiza-las de modo a tudo possuir uma maior lógica e coerência interna, Webern se aproximou, como dito anteriormente, de uma arte que fosse um prolongamento da natureza, que segundo o próprio é baseada em idéias de "tema e variações":

"A raiz nada mais é que o caule, o caule nada mais é que a folha, e a folha nada mais que a flor: variações sobre uma idéia"